Diabetes e sua Relação com a Medicina Dentária: Uma Revisão de Literatura
Dr. Hiram Fischer Trindade – OMD 2764
Introdução
O diabetes mellitus (DM) é uma doença crônica que afeta milhões de pessoas em todo o mundo. Caracteriza-se por hiperglicemia persistente resultante de defeitos na secreção ou ação da insulina, e é classificado principalmente em dois tipos: diabetes tipo 1 (DM1) e diabetes tipo 2 (DM2) (American Diabetes Association, 2022). O impacto sistêmico do diabetes é significativo, e suas complicações afetam diversos órgãos e sistemas, incluindo o sistema cardiovascular, renal e ocular. No entanto, um aspecto menos discutido, mas igualmente importante, é a relação entre o diabetes e a saúde bucal.
A medicina dentária desempenha um papel fundamental no cuidado das pessoas com diabetes, pois há uma relação bidirecional entre diabetes e doenças periodontais (Mealey & Ocampo, 2021). As complicações orais decorrentes do diabetes incluem aumento da incidência de cáries dentárias, xerostomia, infecções fúngicas, atraso na cicatrização de feridas e, principalmente, doença periodontal (Chapple & Genco, 2020). Este artigo tem como objetivo revisar as evidências científicas atuais sobre a interação entre diabetes e medicina dentária, destacando as principais complicações orais associadas ao diabetes, os mecanismos subjacentes e as recomendações clínicas para o manejo odontológico de pacientes com diabetes.
Diabetes e a Doença Periodontal
Evidências Clínicas
Uma das principais interações entre diabetes e saúde bucal é a forte associação entre o diabetes e a doença periodontal. A doença periodontal é uma inflamação crônica dos tecidos que sustentam os dentes, levando à destruição dos tecidos periodontais e, em casos mais avançados, à perda dental. Vários estudos demonstram que pacientes com diabetes têm um risco aumentado de desenvolver doença periodontal (Löe, 1993; Preshaw et al., 2012). Além disso, a gravidade da doença periodontal tende a ser maior em pessoas com controle glicêmico inadequado.
Pessoas com diabetes têm uma prevalência duas a três vezes maior de periodontite em comparação com indivíduos não diabéticos (Chapple & Genco, 2020). Em particular, os pacientes com DM2 apresentam risco elevado de doença periodontal severa, uma complicação que pode resultar em perda dentária precoce. Esse risco é maior em indivíduos que apresentam um controle glicêmico pobre, refletido em níveis elevados de hemoglobina glicada (HbA1c).
Mecanismos Patológicos
Os mecanismos pelos quais o diabetes contribui para a doença periodontal são multifatoriais. A hiperglicemia crônica resulta em alterações no metabolismo e na resposta imune, promovendo um ambiente inflamatório nos tecidos periodontais. Um dos principais mecanismos é a formação de produtos finais de glicação avançada (AGEs), que se acumulam nos tecidos e aumentam a produção de citocinas pró-inflamatórias, como interleucina-1 (IL-1) e fator de necrose tumoral alfa (TNF-α) (Schmidt et al., 1996). Essas citocinas exacerbam a inflamação periodontal e levam à destruição dos tecidos periodontais.
Além disso, o diabetes compromete a função dos neutrófilos e a resposta imune inata, prejudicando a capacidade do corpo de combater infecções periodontais (Mealey & Ocampo, 2021). A função prejudicada dos fibroblastos também contribui para a cicatrização retardada das feridas periodontais, agravando ainda mais a progressão da doença periodontal.
Impacto da Doença Periodontal no Controle Glicêmico
A relação entre diabetes e doença periodontal não é unilateral. Evidências sugerem que a doença periodontal pode exacerbar o controle glicêmico em pessoas com diabetes (Taylor et al., 2005). A inflamação periodontal crônica aumenta a resistência à insulina, dificultando o controle da glicemia. Estudos clínicos indicam que o tratamento da doença periodontal pode melhorar modestamente o controle glicêmico, reduzindo os níveis de HbA1c em aproximadamente 0,4% (D’Aiuto et al., 2018). Esse efeito benéfico reforça a importância de integrar o manejo da saúde bucal nos cuidados de rotina para pacientes com diabetes.
Outras Complicações Orais Associadas ao Diabetes
Xerostomia
A xerostomia, ou boca seca, é uma condição comum em pacientes diabéticos, particularmente naqueles com controle glicêmico inadequado (Moore et al., 2001). A redução na produção de saliva pode ser causada tanto pela neuropatia autonômica, uma complicação do diabetes, quanto pelo uso de medicamentos antidiabéticos que afetam a função das glândulas salivares. A saliva desempenha um papel essencial na manutenção da saúde bucal, pois possui propriedades antimicrobianas e auxilia na remoção de detritos alimentares e na neutralização de ácidos. Assim, a xerostomia aumenta o risco de cáries dentárias e infecções fúngicas, como candidíase oral (Saini et al., 2010).
Cáries Dentárias
Embora a associação entre diabetes e cárie dentária seja menos estabelecida do que com a doença periodontal, o risco de cáries pode ser aumentado em pacientes com diabetes devido à xerostomia e ao aumento da glicose salivar (Collin et al., 1998). A saliva com níveis elevados de glicose pode promover o crescimento de bactérias cariogênicas, como Streptococcus mutans, levando a uma maior incidência de cáries. Além disso, o desequilíbrio no fluxo salivar agrava o risco de desenvolvimento de cáries.
Candidíase Oral
O diabetes também está associado a um risco aumentado de infecções fúngicas, especialmente a candidíase oral. A candidíase é causada pelo crescimento excessivo de fungos do gênero Candida, que são comensais normais da cavidade oral. Pacientes diabéticos, especialmente aqueles com mau controle glicêmico, apresentam uma maior predisposição a infecções por Candida devido à hiperglicemia e à função imunológica comprometida (Scully et al., 2008). A candidíase oral pode se manifestar como placas brancas na mucosa oral, lesões eritematosas ou sensação de queimação.
Atraso na Cicatrização de Feridas
O atraso na cicatrização de feridas é uma complicação bem conhecida do diabetes, e isso se estende às feridas orais. Pacientes diabéticos podem apresentar cicatrização retardada após procedimentos cirúrgicos, como extrações dentárias e cirurgias periodontais (Mealey & Ocampo, 2021). A hiperglicemia prejudica a função dos fibroblastos, a formação de colágeno e a angiogênese, processos essenciais para a cicatrização normal das feridas. Isso aumenta o risco de infecções pós-operatórias e complicações durante a cicatrização.
Recomendações Clínicas para o Manejo de Pacientes com Diabetes
O manejo odontológico de pacientes diabéticos exige uma abordagem multidisciplinar, envolvendo tanto o dentista quanto o médico responsável pelo controle do diabetes. A seguir estão algumas recomendações baseadas em evidências para o tratamento odontológico de pacientes com diabetes.
Avaliação do Controle Glicêmico
Antes de realizar qualquer procedimento odontológico invasivo, é fundamental avaliar o controle glicêmico do paciente. Pacientes com HbA1c acima de 8% ou com episódios frequentes de hipoglicemia devem ser tratados com cautela, e é recomendada uma consulta prévia com o médico endocrinologista para otimizar o controle glicêmico (Chapple & Genco, 2020).
Prevenção e Tratamento da Doença Periodontal
Dada a forte associação entre diabetes e doença periodontal, é crucial que os pacientes diabéticos mantenham uma rotina de higiene bucal rigorosa, com escovação adequada, uso de fio dental e visitas regulares ao dentista para limpezas profissionais. O tratamento da periodontite em pacientes diabéticos deve incluir raspagem e alisamento radicular, além de instruções personalizadas de higiene bucal. Em casos severos, terapias adjuvantes, como o uso de antimicrobianos locais, podem ser indicadas (Preshaw et al., 2012).
Xerostomia e Manejo da Cárie
Para pacientes com xerostomia, é importante recomendar o uso de substitutos salivares, como saliva artificial, e estimular a ingestão de líquidos. Produtos contendo flúor, como pastas dentais e bochechos, podem ser indicados para reduzir o risco de cáries dentárias. Além disso, é fundamental monitorar a dieta do paciente, limitando a ingestão de açúcares refinados e incentivando uma dieta balanceada.
Cirurgias e Procedimentos Invasivos
Durante cirurgias orais ou procedimentos invasivos, como extrações dentárias, é necessário monitorar cuidadosamente os níveis de glicose do paciente e, se necessário, ajustar a dose de insulina ou medicação antidiabética. É importante realizar esses procedimentos em períodos do dia em que o controle glicêmico do paciente seja mais estável, geralmente pela manhã. A profilaxia antibiótica pode ser indicada em casos de cicatrização retardada ou quando o paciente tem risco aumentado de infecções (Mealey & Ocampo, 2021).
Conclusão
A relação entre diabetes e saúde bucal é complexa e bidirecional. O diabetes predispõe os pacientes a uma série de complicações orais, como doença periodontal, xerostomia, cáries dentárias, candidíase e atraso na cicatrização de feridas. Por outro lado, a presença de doenças periodontais pode agravar o controle glicêmico em pacientes diabéticos. Assim, o manejo odontológico desses pacientes deve ser realizado de forma integrada, com foco na prevenção e tratamento precoce das complicações orais. Além disso, é essencial promover a conscientização sobre a importância da saúde bucal como parte do manejo global do diabetes.
Referências
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